quinta-feira, 23 de dezembro de 2010


Trecho de 
"A teoria é um processo, não um fim: uma abordagem feminista da prática da teoria" 
Autoria de Anne Bottomley  

(Extraido de RICHARDSON, J. e SANDLAND, R. Feminist Perspectives on Law and Theory, London/Sydney Cavendish Publishing)

(Tradução de Thiago Arruda, revisada por Felipe Evangelista, alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB)

LEVANDO O FEMINISMO A SÉRIO

Continuamos precisando recusar-nos a permitir que o(s) nosso(s) feminismo(s) sejam lidos somente em um terreno acadêmico: essa é uma constatação de que, enquanto o nosso feminismo embasa nosso trabalho acadêmico, não pode ser validado por ele. Podemos usar o trabalho acadêmico para explorar o feminismo, mas não podemos, e nem devemos, procurar uma identidade e um propósito final para o feminismo na academia. Duas conseqüências advêm disso. A primeira é a necessidade de nos engajarmos com o nosso material, enquanto reconhecemos que temos um projeto não baseado inteiramente na academia. Temos de ser honestos em relação a isso: não o ser resultará numa continuação da produção do trabalho que caracterizei como "passivo", ou seja, um trabalho com a lei (e a teoria) dentro de um inexplorado "imperativo feminista". Temos que tomar nosso feminismo como um dado que é tratado mais problematicamente que axiomaticamente; isto é, temos que compreender que o nosso feminismo não é um empreendimento coerente, racional, intelectual, mas algo que continua a desafiar essas limitações. Temos que continuar a explorar e a testar nossos instintos feministas e, ao fazê-lo, podemos, e devemos, fazer valer as nossas credenciais acadêmicas neste projeto. Mas (e esse é um mas importante), ao fazê-lo, devemos reconhecer que é mais provável que, ainda que nós possamos, em certa medida, fundamentar nosso feminismo, ele (nós) não será (seremos) reduzido (s), ou sua (nossa) geografia restrita, a um terreno totalmente acadêmico. Minha primeira preocupação é, então, sublinhar que o nosso feminismo tem de embasar o nosso trabalho acadêmico, que o nosso projeto como feministas é de fato esse. Mas, em segundo lugar, nós devemos olhar mais de perto e com muito mais cuidado a forma como traduzimos esse projeto em nossas vidas acadêmicas. O projeto feminista não pode ser usado como uma desculpa para  trabalhos teóricos pobres.


Escrever um artigo sobre a teoria, escrever um artigo teórico; o que isso implica? Que expectativas um leitor traz para tal artigo? Por que padrões meus/nossos colegas julgam a validade de um artigo como esse? “Validade”: palavra estranha para se usar. Que palavras eu ouvi recentemente que costumavam descrever artigos que queremos elogiar – “bons”, mas mais freqüentemente, agora eu passo a pensar neles como "fortes". Força – eu tenho que pensar mais sobre essa palavra. É um juízo normalmente expresso juntamente com um conjunto de outros critérios: boa fundamentação, robustez de argumentos, clareza de pensamento e de expressão, etc. Em que medida “força” também envolve o critério de pensamento inovador? E em que medida deve o pensamento inovador ser apresentado em um padrão ou forma que sinaliza a presença dos outros critérios? Quando é que a “força” pode ser esticada para dar expressão ao pensamento inovador, ou explorá-lo em diferentes formas de apresentação escrita? Isso pode ser “bravo”, mas quando a bravura” torna-se temerária, uma fraqueza ao invés de uma força? Essas perguntas tornaram-se particularmente pertinentes para aqueles de nós que estamos a escrever às sombras do “Exercício de Atividade de Pesquisa". Quando nos aproximamos da terceira rodada desse exercício, a palavra “forte” freqüentemente ressoa com a utilização de outro termo interessante: "escolástico". Agora, quais as expectativas que trazemos para julgar um trabalho como escolástico? O que significa para mim, agora, pensar a respeito da apresentação de um artigo sobre feminismo e teoria, com as palavras ‘forte’ e ‘escolástico’ flutuando no éter?
Que marcas em/sobre um texto propõem uma abordagem "escolástica"?  Eu poderia ter começado meu artigo seguindo um princípio fundamental do trabalho escolástico – começar dentro de outro texto. Situar este texto através da citação de outros – isto sugere três funções. Primeiro, confere autoridade ao trabalho de alguém. Em segundo lugar, situa o trabalho de tal forma que indica que alguém está familiarizado com todo o material relevante e que este alguém é capaz de selecionar, a partir desse material, um início adequado. Em terceiro lugar, tendo este alguém se situado, passa então a aplicar, possivelmente através da diferenciação, o texto anterior ao seu próprio trabalho.
Escrever teoria é geralmente entendido como escrever "sobre a teoria". Para encontrar uma posição, tem-se que localizar o mapa da teoria; não é suficiente meramente mostrar o pensamento analítico; é preciso mostrar familiaridade com o terreno que já foi estabelecido como "teoria" e seguir um padrão para a
apresentação de um trabalho
que soe teórico. Apesar de estarmos hoje desconfiados de termos como “objetivo” e “racional”, continuamos a usá-los como princípios do trabalho – um documento deve apresentar um argumento que pode ser seguido e justificado, a mera afirmação não é suficiente, e o argumento deve ser expresso em uma forma que afirme sua validade – a autoridade deve vir a partir do próprio argumento, não da posição do falante.
O desenvolvimento da escolaridade é sempre retratado de um modo desapaixonado - embora nós não “o nomeemos” freqüentemente, continuamos a trabalhar dentro de um quadro que sugere que estamos simplesmente em busca da verdade, ou pelo menos de uma verdade melhor do que aquela que temos no momento. Sabemos, de fato, que a nossa escolaridade é tanto dirigida como cerceada pelos quadros institucionais em que nos encontramos. A produção de conhecimento não é um processo desapaixonado, mas, sim, um negócio sujo e contencioso, tão sujo e tão contencioso que parece melhor que nós não pensemos sobre isso com tanta freqüência, já que fazê-lo pode parecer explodir nossos mitos fundantes, os que tornam possível o nosso próprio processo de trabalho e nossa apresentação como estudiosos. Na verdade, pode ser um golpe sério ser requisitado para explorar as premissas teóricas de alguém ou confessar às forças de mercado que influenciam a produção escolástica.
No entanto, penso que todos nós concordamos, como feministas, que certas tradições de trabalho escolástico são valiosas. A questão é quando estas tradições têm sido utilizadas para restringir, ou até mesmo negar, o potencial de desenvolvimento de trabalhos que são importantes para nós, especialmente dos trabalhos exploratórios incipientes, que estão alcançando territórios difíceis, nos quais pensamos vislumbrar novos horizontes de possibilidade, mas percebemos que não temos mapas sempre à mão. Nós nos encontramos, algumas vezes, trabalhando em margens perigosas – e é muito tentador jogar com segurança, especialmente quando somos classificadas pelos trabalhos publicados. Portanto, temos de tentar encontrar os dispositivos que
nos permitem explorar e começar a encontrar voz(es), mas que também nos permitam interagir com os materiais uns dos outros e estabelecer modos de engajamento que não nos calem, mas que nos permit
am avaliar.
Temos de pensar com clareza sobre a idéia de teoria, para que possamos começar a encontrar outras formas de engajamento com a teoria e uso dela. Por exemplo, eu acho que um dos problemas com uma idéia de teoria-feminista-do-direito é que o termo implica em uma teoria sobre a lei que é feminista. Além disso, o processo de ligar termos individuais de referência em uma base regular produz, em algum momento, uma presunção de que a ligação agora forma uma categoria. Os termos individuais fundem-se em um. Uma identidade é formada. No entanto, usar tal identidade ou categoria tem, em si, certos pré-requisitos e cria, funcionalmente, algumas presunções. O pré-requisito principal, eu diria, é que o núcleo de identidade é sinalizado pelo primeiro termo utilizado – nesse caso, o feminismo. A presunção, portanto, é de que o feminismo é o marcador-chave da especificidade. Mas, ainda, uma segunda presunção é feita – de que pelo menos um dos termos é estável como um referencial. Neste caso, ele poderia ser o termo “teoria do direito”. Nós sabemos o que é a teoria do direito e estamos simplesmente acrescentando a especificidade do feminismo. Na prática, porém, esta referência simplesmente não é estável o suficiente: ela realmente sinaliza muito pouco além de trazer “teoria” ao “direito”, ou “direito” à “teoria”. Podemos tentar estabilizar o objeto fazendo referência à "jurisprudência" e não à teoria do direito – mas provavelmente encontraremos alguma resistência interessante. "Jurisprudência" também firmemente conota a referência central como sendo o "direito" ao invés da "teoria". Um breve olhar sobre qualquer texto de jurisprudência irá nos lembrar porque a ruptura com a "jurisprudência", e com a herança estupidificante do positivismo, foi assinalada pelo abrangente termo "teoria do direito". Essa simples mudança de terminologia sinalizou uma pausa para a liberdade – uma chance para explorar a teoria, per si, e depois agregá-la a nosso próprio conhecimento e entendimento da lei. É essa memória que agora me leva de volta à idéia de teoria feminista do direito.
Categorias, como identidades, não são nem unitárias, nem estáveis: são contingentes – o processo de unir termos e fundi-los por nomeação dá a ilusão da estabilidade e da promessa de realização, mas, na prática, o processo pelo qual eles estão ligados, e as finalidades servidas por essa ligação, são transitórios. É um processo de acoplamento e desacoplamento, e nesse processo podemos aproveitar a oportunidade de examinar, e reexaminar, cada um dos termos utilizados. Na prática, nós fazemos isso o tempo todo – usamos o feminismo para interrogar a teoria e a teoria para interrogar o feminismo e, em seguida, usamos ambos/ou um deles para interrogar o direito, e assim o processo continua. Mas nós reconhecemos muito raramente que este é o processo no qual estamos envolvidos, e isto é o que realmente me interessa para os fins deste artigo. Preferimos, por muitas razões, trabalhar presumindo axiomas em vez de utilizar premissas. Nós presumimos o feminismo e, em seguida, estamos simplesmente trabalhando na teoria, ou vice-versa, ou nós presumimos o feminismo e estamos trabalhando no direito, ou vice-versa. E então, de dentro do terreno marcado por esses movimentos didáticos, emerge um possível centro, um possível unificador, e, em vez de ver a geografia do qual ele emerge, voltamos nosso olhar para o novo lugar. Os terrenos marcados como "feminismo", "direito" e "teoria" tornam-se uma possível teoria-feminista-do-direito. E nós somos seduzidos a viabilizar esse lugar, presumindo-o – nós perdemos o senso de iminência e de contingência falando (d)isso como uma coisa-que-já-existe. Mas isso é uma armadilha. Uma armadilha, porque, uma vez que começamos a tentar construir dentro dela, nós, na verdade, construímos sobre ela. Então não podemos nos dar ao luxo de olhar, ou revelar, fundações instáveis. Em vez disso, colocamos nossa vista sobre um novo horizonte – encontrar/criar a teoria feminista do direito. Em vez do processo, o objeto se torna visível. O que ainda se perde facilmente é a finalidade, o projeto – este é tomado por certo e, em seguida, é muito facilmente subsumido.





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