quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Diante do espelho

(Mulher ao espelho- Pablo Picasso)

Diante do espelho

Eduardo Rabenhorst

A constante defesa da interdisciplinaridade no campo do direito não elimina o visível desconforto causado por vezes pela simples menção a determinados temas que ultrapassam suas tradicionais fronteiras. É bem verdade que os juristas estão cada vez mais abertos a domínios de pesquisa que antes poderiam lhes custar reputação acadêmica. Contudo, isso não significa que o saber jurídico tenha simplesmente decidido escancarar suas portas, outrora tão cuidadosamente fechadas. Ainda que considerados atuais ou relevantes, muitos desses novos “motivos” ou pontos de vista continuam a suscitar desconfiança, sobretudo quando lançam suspeitas sobre o significado de conceitos basilares do direito, tais como a igualdade ou a imparcialidade, ou sobre o modo tradicional de expressão do conhecimento jurídico. O mesmo ocorre em relação ao uso de estilos alternativos no trabalho de escrita sobre o direito. Apesar do surgimento e expansão de novas áreas de investigação, tais como “direito e literatura” ou “direito e cinema”, alguns formatos de composição de textos sobre o direito (ou textos no direito) seguem sendo vistos como excessivamente subjetivos ou irracionais. Escrever a partir de um relato pessoal, um testemunho ou da narrativa de uma experiência privada, por exemplo, é cometer, entre nós acadêmicos do direito, grave indisciplina universitária. É que, talvez, como já assinalara Pierre Bourdieu há mais de uma década, a força do direito segue dependendo de regras restritas sobre quem está autorizado a falar, sobre o que se pode falar, e de que forma isso deve ser feito.
Ora, não estariam acima indicadas duas das dificuldades iniciais de aproximação entre o feminismo e o direito? É bem possível. Malgrado ter surgido no âmbito de um movimento político de reivindicação por direitos para as mulheres, o feminismo parece sempre ter sido, mesmo na sua vertente dita “liberal”, uma prática intelectual “crítica” em relação ao direito. E essa “crítica” não tem apenas o sentido da denúncia de um compromisso da “cultura jurídica” com uma estrutura sexista, mas ela passa, também, pela exigência de que o saber jurídico possa desvelar aquilo que nele está oculto, principalmente no que concerne ao sujeito que o pratica. A teoria do direito, enquanto forma de saber, deveria, assim, ter a capacidade de ser reflexiva na dupla dimensão a que alude esta palavra: reflexão, pensamento; mas também reflexo, como uma imagem projetada em um espelho. Fazendo uso mais uma vez de Bourdieu, diríamos que antes de objetivar o mundo normativo, o jurista precisa objetivar a si mesmo e entender que seu discurso é menos sobre um objeto e mais sobre sua relação com ele. Tal seria a base de uma atitude verdadeiramente “crítica” em relação ao direito: diante do espelho, deveríamos talvez perguntar: quem somos nós? Para quem exercemos nossa atividade? De que modo devemos fazê-lo? Faço minhas as palavras de Alda Facio sobre como devemos escrever quando trabalhamos nas interseções entre o feminismo e o direito, e advogamos uma perspectiva crítica sobre o campo jurídico:
 Por isso sustento que uma verdadeira TCD [Teoria Crítica do Direito] deve incluir outros formatos de expressão de ideias que não apenas permitam incluir mais vozes, mas que facilitem a incorporação de sentimentos e a concreção de ideias abstratas em pessoas de carne e osso e em experiências realmente vividas. Com isso não estou propugnando pela subjetividade irracional. Acredito ser importante manter a racionalidade e a objetividade como metas, mas estou convencida que às vezes, o mais racional é ser emotiva e que a única forma de se aproximar da objetividade é explicitar de onde se observam e se analisam os fatos e as ideias.

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