Pedro Parini
Em nossa comunicação cotidiana, deparamo-nos constantemente com o problema de adequar nosso pensamento e nossas sensações às palavras que escolhemos para expressá-los e, ainda – se nosso objetivo é de fato o tão improvável sucesso da comunicação –, com a difícil tarefa de dispor as palavras escolhidas de forma coerente e em conformidade com as regras de sintaxe da língua na qual nos expressamos.
Certamente, a partir do momento em que nos sentimos confortáveis com a língua, desempenhamos essa tarefa talvez inconscientemente e quase sem esforço algum. Mas isso não quer dizer que a interação dos mundos (interior e exterior em relação ao próprio falante) com os enunciados linguísticos seja uma tarefa simples. Pode-se obter facilmente uma prova empírica da complexidade do processo de comunicação no momento em que procuramos falar em outro idioma menos conhecido para nós. Diante disso, temos um dilema: é o mundo que deve se adequar à linguagem que o comunica, ou é a linguagem que deve se adequar ao mundo? Dilema que nos leva a uma aporia: mundo e linguagem são coisas diferentes?
Quando percebemos que idiossincrasias, pensamentos confusos e obscuros ou objetos que nos são estranhos são dificilmente representáveis num processo de comunicação, isso se deve à incompatibilidade entre, de um lado, nossas ideias e os eventos que percebemos, e, de outro lado, a expressão simbólica que procura comunicá-los. Dessa forma, pensar coerentemente muitas vezes significa ser capaz de traduzir o pensamento em palavras organizadas também de forma, em tese, coerente. Há uma série de constrangimentos linguísticos que nos impõem uma maneira correta de pensar e de organizar nossas ideias e sensações em relação ao mundo. A normatividade da língua (ortográfica, gramatical, semântica) de certa forma restringe as possibilidades de pensar o mundo.
Algo parecido acontece com a composição musical. Tradicionalmente a arte da composição é definida como a arte de organizar os sons, que já são e estão em algum lugar, de maneira coerente. Na concepção ocidental da música, isso significa saber lidar com no máximo 12 sons (12 notas musicais) que devem ser arranjados segundo critérios aceitos (modos, tonalidades, cadências). Mas e o que acontece com o resto dos sons que não se encaixam no padrão? São considerados ruídos.
O mundo que faz sentido, portanto, é aquele que se encaixa em determinados padrões ou categorias. A linguagem que conhecemos e que empregamos na comunicação desses “sentidos” determina a forma como pensamos e vivenciamos o mundo. Por exemplo, um falante de português tende a pensar as cores de acordo com os nomes disponíveis para essas cores. De maneira simplificada, em português temos o vermelho, o verde, o amarelo, o azul. E além dessas cores simples, temos as variações de tons: o verde claro e escuro, o azul claro e o escuro. Já em italiano, a diferença entre o azul claro e o azul escuro não é apenas uma questão de tonalidade, mas são cores diferentes, com nomes diferentes. Assim como o laranja e o vermelho são cores diferentes no português e em várias outras línguas, o azul claro (azzurro) e o azul escuro (blu) não são uma variação do azul, mas duas cores distintas. É evidente que podemos complexificar a língua com um novo léxico capaz de absorver uma pluralidade infinita de outras cores, mas que podem igualmente ser percebidas apenas como variações de outras cores consideradas primitivas. O mesmo acontece com vários outros fenômenos empíricos e semânticos em diferentes idiomas. Um desses fenômenos é a relação entre o gênero gramatical e o gênero sexual dos animais.
Acredito que é uma tendência dos seres humanos perceber e classificar o mundo exterior a partir de sua própria imagem, de como se veem. A nossa constituição física e mental é parâmetro para a nossa compreensão e categorização do mundo. São os conceitos sempre relativos do eu e do outro, dentro e fora, centro e periferia, grande e pequeno, frente e trás, cima e baixo que determinam as metáforas que empregamos para nos comunicar sobre tempo e espaço.
Da mesma forma, categorizamos o mundo a partir de algo que é natural aos seres humanos e à maioria dos animais: os gêneros masculino e feminino, mesmo que apresentem características extremamente variáveis em cada espécie. Até as plantas podem ser classificadas como macho ou fêmea. E não paramos aí. Em português ou em italiano, por exemplo, mesmo objetos inanimados ou até substantivos abstratos são classificados segundo um gênero. Em inglês, por exemplo, essa classificação é menos importante e mais indeterminada. A despeito de alguns poucos casos, raramente nos referimos em inglês a um objeto inanimado como macho ou fêmea. Ship (navio) em inglês é she (ela), mas chair (cadeira), book (livro), wall (parede) simplesmente não têm sexo, ou melhor, gênero. Já no caso do alemão, do islandês, do grego ou do latim, além do masculino e do feminino, há o gênero neutro nos vocabulários. Mas o que deve ser neutro na gramática é também neutro no mundo? É apenas uma questão gramatical? Por que “sol” é “homem” em português e em italiano, e “mulher” em alemão (die Sonne)? E por que Tisch (mesa) é “macho” em alemão, mas “fêmea” em português? Em português diríamos facilmente que se deve ao fato de a palavra terminar com a letra “a”. Mas em alemão? Há regras também no alemão que determinam se uma palavra será masculina, neutra ou feminina. Mas as exceções talvez sejam mais abundantes do que os casos que se adéquam às regras.
Mais uma vez pergunto: é a gramática que fixa o gênero das coisas que não têm sexo, ou é o gênero das coisas que determina o gênero gramatical dos nomes que designam as coisas? Lembro-me de uma conversa com um conhecido meu teuto-brasileiro que me ajudava a tentar compreender os gêneros, gramaticais claramente, em alemão. Ele me dizia que quando criança, na escola alemã onde estudava, procurava pensar que as coisas fortes e robustas eram do sexo masculino, enquanto as coisas frágeis eram do sexo feminino e isso deveria corresponder de maneira idêntica ao gênero das palavras em alemão. Talvez para esse meu conhecido o sol seja uma doce moça frágil e delicada, que aparece em alguns poucos momentos da vida dos que habitam a Europa setentrional, aquecendo os corações congelados pelo frio do inverno. O que lhe fosse indeterminado, durante o aprendizado do alemão, segundo esse critério, isto é, o que não fosse forte, nem frágil, deveria ficar para o neutro.
Os portugueses, por sua vez, simplesmente aboliram o neutro, à exceção do isto, do isso e do aquilo (que paradoxalmente foram aqui precedidos do artigo masculino em cópula com a preposição). Já os italianos foram mais democráticos com alguns substantivos neutros que advieram do latim e estabeleceram o singular no masculino e o plural no feminino. É por isso que il labbro (o lábio) no singular vira le (as) labbra no plural; l’uovo (ovo), le uova; il dito (dedo), le dita; il paio (par), le paia.
Os esquemas lingüísticos que nos ajudam a construir a realidade na qual nos inserimos, em parte voluntariamente, em parte porque nascemos numa tradição já conformada, determinam e são determinados por essa realidade em uma relação de interação recíproca. Assim, vemos o mundo organizado segundo a categoria macho/fêmea, homem/mulher, masculino/feminino. O que não se encaixa no padrão binário é ruído, dissonância, nonsense. Os juristas, apegados à tradição do caráter imperativo-normativo do direito, foram os primeiros a se refugiarem nesse modo de conceber o mundo: até pouco tempo, estupro só tinha a mulher como vítima em potencial e era diferente do, agora revogado, atentado violento ao pudor; o crime de tráfico era de mulheres e não de pessoas; honesta deveria ser a mulher, pois para o homem honestidade seria algo diferente. Por outro lado, casamento ainda é a união entre homem e mulher e “concubino” simplesmente não existe no dicionário e deve vir acompanhado de aspas num texto que pretende ser fiel ao vernáculo. E assim segue-se ainda com o conceito lingüístico de pátrio poder e com a diferença institucional entre casamento e união estável. Claro, felizmente boa parte deles são conceitos já não mais vigentes no vocabulário da dogmática, mas talvez ainda esquemas importantes de construção da realidade dos juristas, estes, no passado, apenas homens do sexo masculino. Apesar de terminar em “a”, o jurista era macho.
Se tinha no começo uma pergunta apenas, termino agora com uma plêiade delas, típicas de uma “filosofia de blog”. Qual o critério que deve prevalecer na organização do mundo? O critério histórico? O critério genético? O critério fenotípico? O critério estético? O critério da força, do poder, ou da dominação? Todos? Nenhum?
Temos somente dois gêneros na gramática em português. A questão é se isso significa existirem apenas dois gêneros de indivíduos. O neutro da gramática em alemão não tem como função simplesmente absorver a complexidade do que escapa ao masculino e ao feminino. Não é esse o seu propósito. Então inventar novas categorias ou novos padrões seria uma solução para o problema? Devem ser três os gêneros? Quatro? Cinco? Ou vinte e seis?
Se por um lado é prazeroso e confortante dizer “eu sou... alguma coisa”, por outro, pertencer a um gênero significa, por vezes, abdicar das diferenças específicas. É preciso, portanto, fazer parte de um gênero? Pertencer a um gênero me faz mais ou menos especial?
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