sexta-feira, 24 de dezembro de 2010


Interessante documentário (em francês com legendas em português) feito pela TV portuguesa sobre a vida e a obra de Simone de Beauvoir. 


quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

As relações de gênero na gramática e na vida


Pedro Parini


Em nossa comunicação cotidiana, deparamo-nos constantemente com o problema de adequar nosso pensamento e nossas sensações às palavras que escolhemos para expressá-los e, ainda – se nosso objetivo é de fato o tão improvável sucesso da comunicação –, com a difícil tarefa de dispor as palavras escolhidas de forma coerente e em conformidade com as regras de sintaxe da língua na qual nos expressamos.

Certamente, a partir do momento em que nos sentimos confortáveis com a língua, desempenhamos essa tarefa talvez inconscientemente e quase sem esforço algum. Mas isso não quer dizer que a interação dos mundos (interior e exterior em relação ao próprio falante) com os enunciados linguísticos seja uma tarefa simples. Pode-se obter facilmente uma prova empírica da complexidade do processo de comunicação no momento em que procuramos falar em outro idioma menos conhecido para nós. Diante disso, temos um dilema: é o mundo que deve se adequar à linguagem que o comunica, ou é a linguagem que deve se adequar ao mundo? Dilema que nos leva a uma aporia: mundo e linguagem são coisas diferentes?

Quando percebemos que idiossincrasias, pensamentos confusos e obscuros ou objetos que nos são estranhos são dificilmente representáveis num processo de comunicação, isso se deve à incompatibilidade entre, de um lado, nossas ideias e os eventos que percebemos, e, de outro lado, a expressão simbólica que procura comunicá-los. Dessa forma, pensar coerentemente muitas vezes significa ser capaz de traduzir o pensamento em palavras organizadas também de forma, em tese, coerente. Há uma série de constrangimentos linguísticos que nos impõem uma maneira correta de pensar e de organizar nossas ideias e sensações em relação ao mundo. A normatividade da língua (ortográfica, gramatical, semântica) de certa forma restringe as possibilidades de pensar o mundo.

Algo parecido acontece com a composição musical. Tradicionalmente a arte da composição é definida como a arte de organizar os sons, que já são e estão em algum lugar, de maneira coerente. Na concepção ocidental da música, isso significa saber lidar com no máximo 12 sons (12 notas musicais) que devem ser arranjados segundo critérios aceitos (modos, tonalidades, cadências). Mas e o que acontece com o resto dos sons que não se encaixam no padrão? São considerados ruídos.

O mundo que faz sentido, portanto, é aquele que se encaixa em determinados padrões ou categorias. A linguagem que conhecemos e que empregamos na comunicação desses “sentidos” determina a forma como pensamos e vivenciamos o mundo. Por exemplo, um falante de português tende a pensar as cores de acordo com os nomes disponíveis para essas cores. De maneira simplificada, em português temos o vermelho, o verde, o amarelo, o azul. E além dessas cores simples, temos as variações de tons: o verde claro e escuro, o azul claro e o escuro. Já em italiano, a diferença entre o azul claro e o azul escuro não é apenas uma questão de tonalidade, mas são cores diferentes, com nomes diferentes. Assim como o laranja e o vermelho são cores diferentes no português e em várias outras línguas, o azul claro (azzurro) e o azul escuro (blu) não são uma variação do azul, mas duas cores distintas. É evidente que podemos complexificar a língua com um novo léxico capaz de absorver uma pluralidade infinita de outras cores, mas que podem igualmente ser percebidas apenas como variações de outras cores consideradas primitivas. O mesmo acontece com vários outros fenômenos empíricos e semânticos em diferentes idiomas. Um desses fenômenos é a relação entre o gênero gramatical e o gênero sexual dos animais.

Acredito que é uma tendência dos seres humanos perceber e classificar o mundo exterior a partir de sua própria imagem, de como se veem. A nossa constituição física e mental é parâmetro para a nossa compreensão e categorização do mundo. São os conceitos sempre relativos do eu e do outro, dentro e fora, centro e periferia, grande e pequeno, frente e trás, cima e baixo que determinam as metáforas que empregamos para nos comunicar sobre tempo e espaço.

Da mesma forma, categorizamos o mundo a partir de algo que é natural aos seres humanos e à maioria dos animais: os gêneros masculino e feminino, mesmo que apresentem características extremamente variáveis em cada espécie. Até as plantas podem ser classificadas como macho ou fêmea. E não paramos aí. Em português ou em italiano, por exemplo, mesmo objetos inanimados ou até substantivos abstratos são classificados segundo um gênero. Em inglês, por exemplo, essa classificação é menos importante e mais indeterminada. A despeito de alguns poucos casos, raramente nos referimos em inglês a um objeto inanimado como macho ou fêmea. Ship (navio) em inglês é she (ela), mas chair (cadeira), book (livro), wall (parede) simplesmente não têm sexo, ou melhor, gênero. Já no caso do alemão, do islandês, do grego ou do latim, além do masculino e do feminino, há o gênero neutro nos vocabulários. Mas o que deve ser neutro na gramática é também neutro no mundo? É apenas uma questão gramatical? Por que “sol” é “homem” em português e em italiano, e “mulher” em alemão (die Sonne)? E por que Tisch (mesa) é “macho” em alemão, mas “fêmea” em português? Em português diríamos facilmente que se deve ao fato de a palavra terminar com a letra “a”. Mas em alemão? Há regras também no alemão que determinam se uma palavra será masculina, neutra ou feminina. Mas as exceções talvez sejam mais abundantes do que os casos que se adéquam às regras.

Mais uma vez pergunto: é a gramática que fixa o gênero das coisas que não têm sexo, ou é o gênero das coisas que determina o gênero gramatical dos nomes que designam as coisas? Lembro-me de uma conversa com um conhecido meu teuto-brasileiro que me ajudava a tentar compreender os gêneros, gramaticais claramente, em alemão. Ele me dizia que quando criança, na escola alemã onde estudava, procurava pensar que as coisas fortes e robustas eram do sexo masculino, enquanto as coisas frágeis eram do sexo feminino e isso deveria corresponder de maneira idêntica ao gênero das palavras em alemão. Talvez para esse meu conhecido o sol seja uma doce moça frágil e delicada, que aparece em alguns poucos momentos da vida dos que habitam a Europa setentrional, aquecendo os corações congelados pelo frio do inverno. O que lhe fosse indeterminado, durante o aprendizado do alemão, segundo esse critério, isto é, o que não fosse forte, nem frágil, deveria ficar para o neutro.

Os portugueses, por sua vez, simplesmente aboliram o neutro, à exceção do isto, do isso e do aquilo (que paradoxalmente foram aqui precedidos do artigo masculino em cópula com a preposição). Já os italianos foram mais democráticos com alguns substantivos neutros que advieram do latim e estabeleceram o singular no masculino e o plural no feminino. É por isso que il labbro (o lábio) no singular vira le (as) labbra no plural; l’uovo (ovo), le uova; il dito (dedo), le dita; il paio (par), le paia.

Os esquemas lingüísticos que nos ajudam a construir a realidade na qual nos inserimos, em parte voluntariamente, em parte porque nascemos numa tradição já conformada, determinam e são determinados por essa realidade em uma relação de interação recíproca. Assim, vemos o mundo organizado segundo a categoria macho/fêmea, homem/mulher, masculino/feminino. O que não se encaixa no padrão binário é ruído, dissonância, nonsense. Os juristas, apegados à tradição do caráter imperativo-normativo do direito, foram os primeiros a se refugiarem nesse modo de conceber o mundo: até pouco tempo, estupro só tinha a mulher como vítima em potencial e era diferente do, agora revogado, atentado violento ao pudor; o crime de tráfico era de mulheres e não de pessoas; honesta deveria ser a mulher, pois para o homem honestidade seria algo diferente. Por outro lado, casamento ainda é a união entre homem e mulher e “concubino” simplesmente não existe no dicionário e deve vir acompanhado de aspas num texto que pretende ser fiel ao vernáculo. E assim segue-se ainda com o conceito lingüístico de pátrio poder e com a diferença institucional entre casamento e união estável. Claro, felizmente boa parte deles são conceitos já não mais vigentes no vocabulário da dogmática, mas talvez ainda esquemas importantes de construção da realidade dos juristas, estes, no passado, apenas homens do sexo masculino. Apesar de terminar em “a”, o jurista era macho.

Se tinha no começo uma pergunta apenas, termino agora com uma plêiade delas, típicas de uma “filosofia de blog”. Qual o critério que deve prevalecer na organização do mundo? O critério histórico? O critério genético? O critério fenotípico? O critério estético? O critério da força, do poder, ou da dominação? Todos? Nenhum?

Temos somente dois gêneros na gramática em português. A questão é se isso significa existirem apenas dois gêneros de indivíduos. O neutro da gramática em alemão não tem como função simplesmente absorver a complexidade do que escapa ao masculino e ao feminino. Não é esse o seu propósito. Então inventar novas categorias ou novos padrões seria uma solução para o problema? Devem ser três os gêneros? Quatro? Cinco? Ou vinte e seis?

Se por um lado é prazeroso e confortante dizer “eu sou... alguma coisa”, por outro, pertencer a um gênero significa, por vezes, abdicar das diferenças específicas. É preciso, portanto, fazer parte de um gênero? Pertencer a um gênero me faz mais ou menos especial?

Trecho de 
"A teoria é um processo, não um fim: uma abordagem feminista da prática da teoria" 
Autoria de Anne Bottomley  

(Extraido de RICHARDSON, J. e SANDLAND, R. Feminist Perspectives on Law and Theory, London/Sydney Cavendish Publishing)

(Tradução de Thiago Arruda, revisada por Felipe Evangelista, alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB)

LEVANDO O FEMINISMO A SÉRIO

Continuamos precisando recusar-nos a permitir que o(s) nosso(s) feminismo(s) sejam lidos somente em um terreno acadêmico: essa é uma constatação de que, enquanto o nosso feminismo embasa nosso trabalho acadêmico, não pode ser validado por ele. Podemos usar o trabalho acadêmico para explorar o feminismo, mas não podemos, e nem devemos, procurar uma identidade e um propósito final para o feminismo na academia. Duas conseqüências advêm disso. A primeira é a necessidade de nos engajarmos com o nosso material, enquanto reconhecemos que temos um projeto não baseado inteiramente na academia. Temos de ser honestos em relação a isso: não o ser resultará numa continuação da produção do trabalho que caracterizei como "passivo", ou seja, um trabalho com a lei (e a teoria) dentro de um inexplorado "imperativo feminista". Temos que tomar nosso feminismo como um dado que é tratado mais problematicamente que axiomaticamente; isto é, temos que compreender que o nosso feminismo não é um empreendimento coerente, racional, intelectual, mas algo que continua a desafiar essas limitações. Temos que continuar a explorar e a testar nossos instintos feministas e, ao fazê-lo, podemos, e devemos, fazer valer as nossas credenciais acadêmicas neste projeto. Mas (e esse é um mas importante), ao fazê-lo, devemos reconhecer que é mais provável que, ainda que nós possamos, em certa medida, fundamentar nosso feminismo, ele (nós) não será (seremos) reduzido (s), ou sua (nossa) geografia restrita, a um terreno totalmente acadêmico. Minha primeira preocupação é, então, sublinhar que o nosso feminismo tem de embasar o nosso trabalho acadêmico, que o nosso projeto como feministas é de fato esse. Mas, em segundo lugar, nós devemos olhar mais de perto e com muito mais cuidado a forma como traduzimos esse projeto em nossas vidas acadêmicas. O projeto feminista não pode ser usado como uma desculpa para  trabalhos teóricos pobres.


Escrever um artigo sobre a teoria, escrever um artigo teórico; o que isso implica? Que expectativas um leitor traz para tal artigo? Por que padrões meus/nossos colegas julgam a validade de um artigo como esse? “Validade”: palavra estranha para se usar. Que palavras eu ouvi recentemente que costumavam descrever artigos que queremos elogiar – “bons”, mas mais freqüentemente, agora eu passo a pensar neles como "fortes". Força – eu tenho que pensar mais sobre essa palavra. É um juízo normalmente expresso juntamente com um conjunto de outros critérios: boa fundamentação, robustez de argumentos, clareza de pensamento e de expressão, etc. Em que medida “força” também envolve o critério de pensamento inovador? E em que medida deve o pensamento inovador ser apresentado em um padrão ou forma que sinaliza a presença dos outros critérios? Quando é que a “força” pode ser esticada para dar expressão ao pensamento inovador, ou explorá-lo em diferentes formas de apresentação escrita? Isso pode ser “bravo”, mas quando a bravura” torna-se temerária, uma fraqueza ao invés de uma força? Essas perguntas tornaram-se particularmente pertinentes para aqueles de nós que estamos a escrever às sombras do “Exercício de Atividade de Pesquisa". Quando nos aproximamos da terceira rodada desse exercício, a palavra “forte” freqüentemente ressoa com a utilização de outro termo interessante: "escolástico". Agora, quais as expectativas que trazemos para julgar um trabalho como escolástico? O que significa para mim, agora, pensar a respeito da apresentação de um artigo sobre feminismo e teoria, com as palavras ‘forte’ e ‘escolástico’ flutuando no éter?
Que marcas em/sobre um texto propõem uma abordagem "escolástica"?  Eu poderia ter começado meu artigo seguindo um princípio fundamental do trabalho escolástico – começar dentro de outro texto. Situar este texto através da citação de outros – isto sugere três funções. Primeiro, confere autoridade ao trabalho de alguém. Em segundo lugar, situa o trabalho de tal forma que indica que alguém está familiarizado com todo o material relevante e que este alguém é capaz de selecionar, a partir desse material, um início adequado. Em terceiro lugar, tendo este alguém se situado, passa então a aplicar, possivelmente através da diferenciação, o texto anterior ao seu próprio trabalho.
Escrever teoria é geralmente entendido como escrever "sobre a teoria". Para encontrar uma posição, tem-se que localizar o mapa da teoria; não é suficiente meramente mostrar o pensamento analítico; é preciso mostrar familiaridade com o terreno que já foi estabelecido como "teoria" e seguir um padrão para a
apresentação de um trabalho
que soe teórico. Apesar de estarmos hoje desconfiados de termos como “objetivo” e “racional”, continuamos a usá-los como princípios do trabalho – um documento deve apresentar um argumento que pode ser seguido e justificado, a mera afirmação não é suficiente, e o argumento deve ser expresso em uma forma que afirme sua validade – a autoridade deve vir a partir do próprio argumento, não da posição do falante.
O desenvolvimento da escolaridade é sempre retratado de um modo desapaixonado - embora nós não “o nomeemos” freqüentemente, continuamos a trabalhar dentro de um quadro que sugere que estamos simplesmente em busca da verdade, ou pelo menos de uma verdade melhor do que aquela que temos no momento. Sabemos, de fato, que a nossa escolaridade é tanto dirigida como cerceada pelos quadros institucionais em que nos encontramos. A produção de conhecimento não é um processo desapaixonado, mas, sim, um negócio sujo e contencioso, tão sujo e tão contencioso que parece melhor que nós não pensemos sobre isso com tanta freqüência, já que fazê-lo pode parecer explodir nossos mitos fundantes, os que tornam possível o nosso próprio processo de trabalho e nossa apresentação como estudiosos. Na verdade, pode ser um golpe sério ser requisitado para explorar as premissas teóricas de alguém ou confessar às forças de mercado que influenciam a produção escolástica.
No entanto, penso que todos nós concordamos, como feministas, que certas tradições de trabalho escolástico são valiosas. A questão é quando estas tradições têm sido utilizadas para restringir, ou até mesmo negar, o potencial de desenvolvimento de trabalhos que são importantes para nós, especialmente dos trabalhos exploratórios incipientes, que estão alcançando territórios difíceis, nos quais pensamos vislumbrar novos horizontes de possibilidade, mas percebemos que não temos mapas sempre à mão. Nós nos encontramos, algumas vezes, trabalhando em margens perigosas – e é muito tentador jogar com segurança, especialmente quando somos classificadas pelos trabalhos publicados. Portanto, temos de tentar encontrar os dispositivos que
nos permitem explorar e começar a encontrar voz(es), mas que também nos permitam interagir com os materiais uns dos outros e estabelecer modos de engajamento que não nos calem, mas que nos permit
am avaliar.
Temos de pensar com clareza sobre a idéia de teoria, para que possamos começar a encontrar outras formas de engajamento com a teoria e uso dela. Por exemplo, eu acho que um dos problemas com uma idéia de teoria-feminista-do-direito é que o termo implica em uma teoria sobre a lei que é feminista. Além disso, o processo de ligar termos individuais de referência em uma base regular produz, em algum momento, uma presunção de que a ligação agora forma uma categoria. Os termos individuais fundem-se em um. Uma identidade é formada. No entanto, usar tal identidade ou categoria tem, em si, certos pré-requisitos e cria, funcionalmente, algumas presunções. O pré-requisito principal, eu diria, é que o núcleo de identidade é sinalizado pelo primeiro termo utilizado – nesse caso, o feminismo. A presunção, portanto, é de que o feminismo é o marcador-chave da especificidade. Mas, ainda, uma segunda presunção é feita – de que pelo menos um dos termos é estável como um referencial. Neste caso, ele poderia ser o termo “teoria do direito”. Nós sabemos o que é a teoria do direito e estamos simplesmente acrescentando a especificidade do feminismo. Na prática, porém, esta referência simplesmente não é estável o suficiente: ela realmente sinaliza muito pouco além de trazer “teoria” ao “direito”, ou “direito” à “teoria”. Podemos tentar estabilizar o objeto fazendo referência à "jurisprudência" e não à teoria do direito – mas provavelmente encontraremos alguma resistência interessante. "Jurisprudência" também firmemente conota a referência central como sendo o "direito" ao invés da "teoria". Um breve olhar sobre qualquer texto de jurisprudência irá nos lembrar porque a ruptura com a "jurisprudência", e com a herança estupidificante do positivismo, foi assinalada pelo abrangente termo "teoria do direito". Essa simples mudança de terminologia sinalizou uma pausa para a liberdade – uma chance para explorar a teoria, per si, e depois agregá-la a nosso próprio conhecimento e entendimento da lei. É essa memória que agora me leva de volta à idéia de teoria feminista do direito.
Categorias, como identidades, não são nem unitárias, nem estáveis: são contingentes – o processo de unir termos e fundi-los por nomeação dá a ilusão da estabilidade e da promessa de realização, mas, na prática, o processo pelo qual eles estão ligados, e as finalidades servidas por essa ligação, são transitórios. É um processo de acoplamento e desacoplamento, e nesse processo podemos aproveitar a oportunidade de examinar, e reexaminar, cada um dos termos utilizados. Na prática, nós fazemos isso o tempo todo – usamos o feminismo para interrogar a teoria e a teoria para interrogar o feminismo e, em seguida, usamos ambos/ou um deles para interrogar o direito, e assim o processo continua. Mas nós reconhecemos muito raramente que este é o processo no qual estamos envolvidos, e isto é o que realmente me interessa para os fins deste artigo. Preferimos, por muitas razões, trabalhar presumindo axiomas em vez de utilizar premissas. Nós presumimos o feminismo e, em seguida, estamos simplesmente trabalhando na teoria, ou vice-versa, ou nós presumimos o feminismo e estamos trabalhando no direito, ou vice-versa. E então, de dentro do terreno marcado por esses movimentos didáticos, emerge um possível centro, um possível unificador, e, em vez de ver a geografia do qual ele emerge, voltamos nosso olhar para o novo lugar. Os terrenos marcados como "feminismo", "direito" e "teoria" tornam-se uma possível teoria-feminista-do-direito. E nós somos seduzidos a viabilizar esse lugar, presumindo-o – nós perdemos o senso de iminência e de contingência falando (d)isso como uma coisa-que-já-existe. Mas isso é uma armadilha. Uma armadilha, porque, uma vez que começamos a tentar construir dentro dela, nós, na verdade, construímos sobre ela. Então não podemos nos dar ao luxo de olhar, ou revelar, fundações instáveis. Em vez disso, colocamos nossa vista sobre um novo horizonte – encontrar/criar a teoria feminista do direito. Em vez do processo, o objeto se torna visível. O que ainda se perde facilmente é a finalidade, o projeto – este é tomado por certo e, em seguida, é muito facilmente subsumido.





quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Diante do espelho

(Mulher ao espelho- Pablo Picasso)

Diante do espelho

Eduardo Rabenhorst

A constante defesa da interdisciplinaridade no campo do direito não elimina o visível desconforto causado por vezes pela simples menção a determinados temas que ultrapassam suas tradicionais fronteiras. É bem verdade que os juristas estão cada vez mais abertos a domínios de pesquisa que antes poderiam lhes custar reputação acadêmica. Contudo, isso não significa que o saber jurídico tenha simplesmente decidido escancarar suas portas, outrora tão cuidadosamente fechadas. Ainda que considerados atuais ou relevantes, muitos desses novos “motivos” ou pontos de vista continuam a suscitar desconfiança, sobretudo quando lançam suspeitas sobre o significado de conceitos basilares do direito, tais como a igualdade ou a imparcialidade, ou sobre o modo tradicional de expressão do conhecimento jurídico. O mesmo ocorre em relação ao uso de estilos alternativos no trabalho de escrita sobre o direito. Apesar do surgimento e expansão de novas áreas de investigação, tais como “direito e literatura” ou “direito e cinema”, alguns formatos de composição de textos sobre o direito (ou textos no direito) seguem sendo vistos como excessivamente subjetivos ou irracionais. Escrever a partir de um relato pessoal, um testemunho ou da narrativa de uma experiência privada, por exemplo, é cometer, entre nós acadêmicos do direito, grave indisciplina universitária. É que, talvez, como já assinalara Pierre Bourdieu há mais de uma década, a força do direito segue dependendo de regras restritas sobre quem está autorizado a falar, sobre o que se pode falar, e de que forma isso deve ser feito.
Ora, não estariam acima indicadas duas das dificuldades iniciais de aproximação entre o feminismo e o direito? É bem possível. Malgrado ter surgido no âmbito de um movimento político de reivindicação por direitos para as mulheres, o feminismo parece sempre ter sido, mesmo na sua vertente dita “liberal”, uma prática intelectual “crítica” em relação ao direito. E essa “crítica” não tem apenas o sentido da denúncia de um compromisso da “cultura jurídica” com uma estrutura sexista, mas ela passa, também, pela exigência de que o saber jurídico possa desvelar aquilo que nele está oculto, principalmente no que concerne ao sujeito que o pratica. A teoria do direito, enquanto forma de saber, deveria, assim, ter a capacidade de ser reflexiva na dupla dimensão a que alude esta palavra: reflexão, pensamento; mas também reflexo, como uma imagem projetada em um espelho. Fazendo uso mais uma vez de Bourdieu, diríamos que antes de objetivar o mundo normativo, o jurista precisa objetivar a si mesmo e entender que seu discurso é menos sobre um objeto e mais sobre sua relação com ele. Tal seria a base de uma atitude verdadeiramente “crítica” em relação ao direito: diante do espelho, deveríamos talvez perguntar: quem somos nós? Para quem exercemos nossa atividade? De que modo devemos fazê-lo? Faço minhas as palavras de Alda Facio sobre como devemos escrever quando trabalhamos nas interseções entre o feminismo e o direito, e advogamos uma perspectiva crítica sobre o campo jurídico:
 Por isso sustento que uma verdadeira TCD [Teoria Crítica do Direito] deve incluir outros formatos de expressão de ideias que não apenas permitam incluir mais vozes, mas que facilitem a incorporação de sentimentos e a concreção de ideias abstratas em pessoas de carne e osso e em experiências realmente vividas. Com isso não estou propugnando pela subjetividade irracional. Acredito ser importante manter a racionalidade e a objetividade como metas, mas estou convencida que às vezes, o mais racional é ser emotiva e que a única forma de se aproximar da objetividade é explicitar de onde se observam e se analisam os fatos e as ideias.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Blog do NEPGD

Estamos criando um espaço cujo propósito é tentar um exercício de escrita coletiva sobre feminismo jurídico.