sábado, 1 de janeiro de 2011

A TV Globo aprenderá a dizer PresidentA? ou A suavidade da violência simbólica


A TV Globo aprenderá a dizer PresidentA? Conseguimos o principal, ter uma mulher no cargo mais alto do poder executivo, no entanto, aquilo que seria o mais acessório e aparentemente sem importância, parece que não conseguiremos: que o substantivo presidente seja devidamente flexionado e que lhe seja adicionado um “A”, indicativo substancial do “gênero” ao qual a PresidentA faz jus.

A discussão na realidade não é tão boba ou superficial quanto parece, ou como forçosamente quer fazer parecer a rede Globo, ao mostrar que a Dilma, como um capricho a mais, deseja ser chamada de Presidenta. Enquanto isso, na mesma matéria jornalística apresentada hoje por essa emissora, figura uma grande faixa ao fundo, cujo objetivo é informar o telespectador sobre a posse da PresidentE. Em outras palavras, esse pequeno desejo, não será contemplado pela emissora. Ora, de longe se percebe que há qualquer coisa desencaixada, qualquer coisa que poderia ter sido mais bem explicada.

Por que a rede Globo teima em chamar a Presidenta de Presidente? Ao nosso socorro, muitas feministas já calejadas nos tortuosos caminhos da ordem patriarcalista estão aí para nos mostrar que a discussão é muito mais complicada do que possa parecer.

Será então que não estaríamos diante de um exemplo da incrível influência dos binômios estruturantes de uma sociedade patriarcalista dos quais nos fala Frances Olsen (2000, p.25)? Para essa autora, a nossa percepção de mundo, desde o surgimento do pensamento liberal clássico, se organiza através de pares opostos: racional/irracional, ativo/passivo, razão/emoção, pensamento/sentimento, universal/particular etc. E é também a partir de tais binômios que se constrói a simbologia existente por trás daquilo que se entende por feminino e daquilo que se entende por masculino. Os binômios estariam assim sexualizados. Alguns deles identificam-se com as mulheres, e outros com os homens.

É curioso observar como sutilmente a parte considerada superior do binômio vem associada ao masculino e vice-versa. A Globo, e sempre ela, ao passo que nega o “A” da Presidenta, insiste em matérias que associam a figura da mulher às preocupações com a beleza, com roupas adequada à ocasião, com o tempo e dinheiro que necessariamente devem ser despendidos com o trabalho de apresentação ao público. Não é a toa que a consultora de moda entrevistada pela Globo – pasmem, a Globo entrevistou uma consultora de moda, coisa praticamente impensável se no lugar da Dilma estivesse um homem – sugeriu à Presidenta eleita – que, claro, não teve o prazer de ser chamada presidenta – que usasse em sua posse um vestido, pois ressaltaria melhor sua “feminilidade”.

E que espécie de feminilidade é essa que ora é imposta, ora é negada? A afirmação de sua condição de mulher ao querer ser chamada de Presidenta é vista como um absurdo, ou um simples capricho, e por isso sistematicamente deslegitimada. (E que não se venha dizer que é um erro gramatical, posto que já tenha sido mais que provado que presidente é um substantivo comum de dois gêneros). Em contraposição, a condição feminina deve ser ressaltada através de roupas que, se não erotizam o corpo, o tornam ao menos mais condizente com as características inconscientemente atribuídas às mulheres: a fragilidade, a submissão, a incapacidade de dar ordens, e todos os lados mais frágeis dos binômios. Se há razão e sentimento, e há homens e mulheres, pensemos os homens ao lado da razão e as mulheres ao lado dos sentimentos. Se ser PresidentA implica em lidar com poder, neguemos o “A”. Se aparecer com um lindo vestido vermelho no dia da posse é um indicativo das preocupações que todas as mulheres devem ter com a beleza e cuidado dos seus corpos, imponhamos então que a Dilma apareça vestida com um deslumbrante vestido vermelho.

Em que pés andam o mundo? O que até agora aprendemos?

Bourdieu já nos tinha alertado para a suavidade da violência simbólica, que se perpetua em virtude da existência de um modo de pensar baseado na dominação masculina, profundamente incrustado no inconsciente das pessoas. É esse “inconsciente adrocêntrico”, que se materializa no fato da diferença sexual se apresentar aos nossos olhos como algo que parece estar “na ordem das coisas” (BOURDIEU, 2009, p.17), que faz com que nos questionemos cada vez menos e ratifiquemos aquela que parece ser a maneira mais natural de pensar o mundo. Nas palavras de Bourdieu,

"(...) ser “feminina” é essencialmente evitar todas as propriedades e práticas que podem funcionar como sinais de virilidades; e dizer de uma mulher de poder que ela é “muito feminina” não é mais que um modo particularmente sutil de negar-lhe qualquer direito a esse atributo caracteristicamente masculino que é o poder" (BOURDIEU, 2009, p.118)

Não é de hoje que a suposta “ausência de feminilidade” da Presidenta Dilma incomoda a grande mídia. De fato, de que maneira tal feminilidade poderia influenciar nos rumos da democracia ou da própria governabilidade do país? Para que a Presidenta deveria usar um vestido em sua posse? Ou talvez, a pergunta correta seja “para quem”. Por outro lado, por que não Presidenta? Não estamos nós retratando a realidade e ressaltando a própria historicidade desse momento, ao lembrarmos que pela primeira vez temos uma mulher ocupando a função de Presidenta da Nação? Ou devemos, como bem ressalta Pilar del Rio, continuar dizendo “eles” caso queiramos nos referir a uma mulher e um cão, como se o gênero do cão tivesse prioridade sobre o gênero da mulher?

Queiram me perdoar os ferrenhos adeptos da rigidez das normas gramaticais, mas, nesse caso, se não quisermos aceitar que a língua continue a serviço de uma sociedade patriarcal, devemos colocar os pontos nos is: a Dilma é PresindentA, porque ela é mulher, e assim ela foi eleita.

E neste sentido, sejamos como Pilar, que não aceita que determinadas verdades sejam encobertas ou propositalmente atenuadas:

"Só os ignorantes é que me chamam presidente. A palavra não existia porque não havia a função, agora que existe a função há a palavra que denomina a função. As línguas estão aí para mostrar a realidade e não para a esconder de acordo com a ideologia dominante, como aconteceu até agora. Presidenta, porque sou mulher e sou presidenta".


BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

OLSEN, Frances. El sexo del derecho in RUIZ, Alicia. La identidad femenina y el discurso Del derecho. Buenos Aires: Biblos, 2000.

Del Rio, Pilar. Entrevista publicada no Diário de Notícias de Portugal, 2008. Disponível em: http://fundjosesaramago.blogspot.com/2008/07/foi-o-livro-memorial-do-convento-que.html

Publicado por: Raquel Camargo

4 comentários:

  1. Com certeza, por trás de toda esta problemática (presidentA/E) esta subjacente a tentativa de manutenção, dominação e definição de papéis sociais, que remetem a mulher para o pólo menos racional, mais emocional. Conforme referido e bem ao longo do teu texto Raquel, universal/particular, razão/emoção, homem/mulher...enquanto elemento cultural, a língua é uma construção social, diversamente ao que ''muitos'' pensam, não se trata de de meros símbolos ''neutros'', pelo contrário, ela esta também ao serviço de uma ideologia (machista) que, com sucesso tem sido colocada em causa, principalmente pelo movimento feminista...tão poderosa quanto as acções, a língua tem o poder tanto de destruir como (re)construir (reforçar ou desmistificar estereótipos) e se queremos realmente fazer 'justiça' (histórica), é necessário precisar, chamar as ''coisas'' pelo nome, a palavra pode parecer ''estranha'', corrijo, DIFERENTE, à primeira vista, mas ela existe e deve ser utilizada sim, chega de estar escondida no mundo dos homens...sou mulher e demonstro minha competência como mulher ...abaixo o ''TODOS'' generalizado, sou mulher, faço parte de ''TODAS'' e ainda aí, com outras especificações...Dilma presidentA, quer a TV Globo e outras queiram ou não...estamos atentas!
    sugiro a leitura do dicionário português (de Portugal), que define PRESIDENTA como sendo ''feminino de presidente: mulher que preside'' (disponível em: http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=presidenta acesso em 01 de Janeiro de 2010)
    Por:Florita Telo

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  2. Ótimo texto! É importante que esses "detalhes" sejam expostos para que possamos perceber a real sociedade em que vivemos e observarmos a violência de gênero que ocorre a cada dia.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Tem me ferido os ouvidos assistir a programas jornalísticos e verificar que alguns decidiram execrar o corretíssimo vocábulo PRESIDENTA. Percebe-se que houve algum tipo de deliberação por alguns órgãos de comunicação, para que só se usasse a expressão não flexionada ˜presidente˜. É, no mínimo, muito estranho. Os motivos "cabalísticos" acima descritos não deveriam ser sequer levados em consideração, pois, afinal, nossa PRESIDENTA decidiu há muito como quer ser tratada. Será que a PRESIDENTA Dilma terá de sancionar uma Lei (e tem poder para isso!), a fim de que tenha sua vontade respeitada? Sou de opinião que devemos continuar a postar e a reclamar desta autoritária postura contrária à vontade da PRESIDENTA. Quem sabe não conseguiremos derrubar mais esse tolo tabu? Lembro-me perfeitamente que fato semelhante ocorreu quando tentaram também execrar a expressão "risco de vida" da língua portuguesa! Algum “douto” defendeu essa bobagem, mas foram tantos que mostraram a sua impropriedade, pois o termo é empregado até em outros idiomas, tal como o inglês, que emprega igualmente risk of life, etc, que acabaram ressuscitando o ˜risco de vida˜, depois de essa expressão ter passado por risco de morte (diga-se an passant, também correto de se dizer!). Resumindo: em minha modestíssima opinião, existe muito mais de amadorismo do que de profissionalismo nesta questão. Quem dera eu pudesse acreditar que ali existiria algum ardiloso esquema machista! Ao menos, seria alguma demonstração de inteligência! Ao contrário disso, penso (tristemente) que se trata apenas de mais uma vergonhosa demonstração de falta de conhecimento em nosso país: a opinião de algum ou de poucos é acatada como correta, já que à maioria o conhecimento falta.

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