domingo, 9 de janeiro de 2011



Tem sexo o direito?

Eduardo Rabenhorst

Que o direito tem o sexo como um objeto de regulação, é uma evidência. Menos óbvio, talvez, é perceber que se antes o sexo era objeto de incidência jurídica o mais comumente nas esferas civil e penal, ele hoje se faz presente em quase todas as especialidades do direito. É que em uma sociedade com tal nível de juridificação, como é o caso da nossa, o caminho da cama ao tribunal é bem curto. Em matéria de sexo, tudo interessa ao direito, inclusive ao direito fiscal. Por outro lado, o sexo não é apenas um objeto de regulação, mas ele é também, na forma da pretensão à sua livre expressão, um direito no sentido “subjetivo” do termo. Nessa linha é que se desenham os chamados “direitos sexuais”, entendidos como direitos que protegem as decisões e escolhas que os indivíduos fazem sobre seus corpos, desejos e prazeres. Tais direitos estão consignados em diversos textos internacionais de proteção dos direitos humanos, sobretudo aqueles resultantes da IV Conferência Mundial da Mulher ocorrida em Pequim no ano de 1995 (Plataforma de Ação de Pequim).
A pergunta sobre o sexo do direito, entretanto, não concerne à regulação jurídica do sexo ou à expressão da sexualidade enquanto direito. O que se pretende com ela é saber se o direito poderia ser neutro em termos de sexo e gênero, enquete que também pode ser endereçada a outros campos do conhecimento que se apresentam como gerais e assexuados. Relembremos aqui a conhecida observação feita por Simone de Beauvoir de que as mulheres “não têm história”, exatamente porque esta foi tradicionalmente contada por historiadores homens, a partir de um suposto “sujeito universal”, porém visivelmente masculino. Foi, assim, contra a ideia de uma história “assexuada” que surgiram a “história das mulheres” e a historiografia feminista. A mesma “sexuação” pela qual passou a história foi experimentada pela geografia. De que maneira o sexo/gênero pode ser visto como fator que conforma a sociedade e o espaço? Quais seriam as implicações territoriais da divisão sexual? São questões colocadas pelas geógrafas feministas.
Na verdade, os chamados “estudos de mulheres” (Women Studies), proporcionaram nas últimas décadas uma verdadeira varredura dos discursos com pretensão de neutralidade diante do sexo, inclusive os da filosofia e da religião. Quem são os autores desses discursos, a quem eles são dirigidos, qual é a posição das mulheres dentro deles? São perguntas feitas nessa área de investigação. Tomemos aqui como exemplo a filosofia, tal como faz Wanda Tommasi. Por que as mulheres não figuram nos livros de história da filosofia na condição de filósofas, mas apenas enquanto mulheres? Por que a diferença entre os sexos não é considerada como uma autêntica questão filosófica?
Mas voltemos ao direito: pode ele ser avesso às questões de sexo/gênero? A resposta das autoras feministas é claramente não. Malgrado a tentativa de se fazer passar por um instrumento neutro, objetivo e assexuado, o direito parece já ter feito previamente uma opção pelos homens. Afinal, da mesma maneira como ocorreu em outros discursos, a categoria aparentemente neutra e assexuada de “ser humano”, também foi no campo jurídico um importante instrumento de negação da diversidade concreta e ferramenta indispensável de dominação, que confinou as mulheres (e os homens tratados como mulheres) dentro de esquemas genéricos convenientes ao próprio sistema. De fato, do ponto de vista histórico, quem era o humano da expressão “ser humano”? Nunca é demais lembrar o compromisso que a teoria liberal do direito manteve com o sistema escravocrata liberal. Também importa não esquecer que questionamento similar, formulado por Olympe de Gouges, acerca do significado dos termos “homem” e “cidadão” na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 24 de agosto 1789, terminou por lhe custar a própria vida.
Alguém poderia dizer que isso é coisa do passado, e que se outrora o direito foi sexista, hoje, ao menos numa determinada zona geográfica do mundo, ele seria assexuado. Mas as coisas não são tão simples assim. Como observa Alda Facio, um conceito amplo de direito compreende, além do componente formal/normativo, os componentes institucional/estrutural e político/cultural. Logo, é preciso saber se em todos estes planos o direito é efetivamente neutro ou cego em relação ao sexo/gênero. Afinal, mesmo que muitas normas discriminatórias em relação às mulheres e às pessoas com sexualidades divergentes tenham sido removidas de boa parte dos sistemas jurídicos atuais (no caso do ordenamento jurídico brasileiro, por exemplo, isso aconteceu muito recentemente, sobretudo com a entrada em vigor do Código Civil de 2002), faz-se necessário verificar se o sexismo não teria se deslocado para o âmbito dos processos de interpretação e aplicação do direito.
Enfim, tem sexo o direito? Não, diriam algumas autoras feministas, às vezes, acrescentariam outras, sempre, concluiriam outras tantas. 
Para Judith Butler, mais do que possuir um sexo, o direito parece ser um dos seus principais instrumentos de constituição. Afinal, o poder regulatório exercido pelo direito (pelas normas de um modo geral) não atua apenas sobre um sujeito preexistente, mas ele, ao mesmo tempo em que regula, também constrói o sujeito, de tal sorte que “estar assujeitado a uma regulação é também ser subjetivado por ela”. Na verdade, diz a filósofa norte-americana, é a própria lei que produz (e posteriormente exclui) a noção de um sujeito que lhe é anterior. Seguindo essa linha de raciocínio, o sexo/gênero (gender), para Butler, não é um elemento pré-jurídico, mas é a culminação, na “forma jurídica”, da maneira como pensamos a complexa relação entre elementos genéticos, celulares, hormonais e anatômicos. Sexo/gênero não é anatomia ou destino, mas é algo que se constitui enquanto prática através de normas que ao mesmo tempo lhe dão inteligibilidade. Tais normas são similares àquelas que conferem o atributo de “humanos” a determinados sujeitos, de tal sorte que estar em conformidade com elas é também “ser legível” (isto é, ser inteligível) enquanto ser humano, e daí poder se beneficiar dos direitos decorrentes dessa condição. 

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